Resposta: Republicanismo e procedimentalismo

Existem dois republicanismos que devem ser distinguidos cuidadosamente. Um se chama "humanismo cívico" e é um teoria sobre o primado da coisa pública sobre os negócios e interesses particulares; o outro se chama "republicanismo institucional" e é uma teoria sobre o primado das leis e das instituições sobre as pessoas. Acho que o primeiro é relativizado pelo procedimentalismo e o segundo é pelo menos parcialmente retificado por ele.

O humanismo cívico é a doutrina segundo a qual a verdadeira natureza do homem se realiza na atividade política. Ele tende a ver a vida moderna como uma degeneração da vida humana, porque concentrada demais nas idéias de interesse particular e felicidade individual. Para o civista, a verdadeira república é vivida onde os homens se entendem como cidadãos antes que como indivíduos, onde se consideram livres quando participam da tomada de decisões, e não quando são menos coagidos por elas. Essa doutrina não responde à pergunta: "Qual é o Estado ideal?", e sim à pergunta "Qual é a vida humana ideal?", no sentido de "a mais excelente" (aristós). O humanismo cívico responde a um velha crítica contra a democracia ateniense, segundo a qual o preço desse regime era que cada cidadão era um escravo da ágora e não tinha tempo de ocupar-se das próprias coisas. A resposta do civista é de que as coisas políticas, sim, é que são as coisas próprias dos homens, sendo as coisas particulares preocupações menores e estranhas, que por isso eram deixadas aos escravos e às mulheres (aliás, um dos desafios do humanista cívico é mostrar como essa vida plenamente política é possível em sociedades que não têm mais a submissão escrava e feminina para garantir o ócio privado de seus cidadãos).

Já o republicanismo institucional é a doutrina segundo a qual um Estado é melhor quando governado por leis e instituições que quando governado por pessoas. Geralmente, pressupõe uma teoria da natureza humana segundo a qual esta é passional, egoísta e falível. Por isso mesmo, acredita que confiar as decisões ao arbítrio de uma pessoa é sempre mais arriscado do que confiá-la a alguma lei ou instituição prévia. Isso porque, para o institucionalista, quando os homens fazem leis e instituições que os governarão em casos futuros, fazem-nas racionais e excelentes, mas, quando precisam tomar as decisões em vista do caso concreto, são sempre parciais e imprudentes. É verdade, diz o institucionalista, que um homem sábio tomaria sempre a melhor decisão, enquanto uma instituição ou lei prévia, por melhor que seja, só consegue tomar geralmente a melhor decisão, sendo, contudo, injusta em alguns casos, sobretudo os não-previstos e mais complexos. Contudo, os homens sábios ou não existem, ou são raros e difíceis de reconhecer. Por isso, é melhor confiar nas leis e instituições. A imagem célebre é a de Ulysses que, para não ser seduzido pelas sereias e conduzir o navio à destruição nas pedras, amarra-se ao mastro com nós tão fortes que somente vários homens juntos são capazes de libertá-lo depois. Da mesma forma os homens, sabendo-se passionais e egoístas, se amarram ao mastro das leis e instituições, que consegue mantê-los no caminho reto.

O procedimentalismo é uma resposta a outra questão: não "Qual é a vida humana ideal?", como o humanismo cívico, nem "Qual é o Estado ideal?", como o republicanismo institucional, e sim "Como chegar a uma decisão racional?", a que responde que é pelo procedimento deliberativo. O procedimento nem exige que o cidadão faça uma opção definitiva pela vida política em detrimento da vida particular, nem garante a racionalidade por ser prévio, geral e desapaixonado. Ele garante a racionalidade por razões discursivas, seja no caso da elaboração de leis e instituições gerais, seja no caso da tomada de decisão diante do caso concreto. Por isso, o procedimentalismo não está seriamente comprometido nem como o humanismo cívico, nem com o republicanismo institucional.

No entanto, tem em comum com o humanismo cívico a ideia de que a concentração exclusiva na vida privada é uma distorção que compromete a autonomia dos cidadãos. Nem por isso, contudo, aconselha a via oposta, da concentração exclusiva na vida pública. Ao contrário, acredita que a garantia da autonomia privada é uma das condições de possibilidade do exercício da autonomia pública.

Com o republicanismo institucional, por sua vez, tem em comum a ideia de que não são as pessoas que garantem a racionalidade das decisões. Nem por isso, contudo, acredita que as leis e instituições serão racionais e excelentes pelo simples fato de serem feitas previamente, e não em vista do caso concreto. Acredita, sim, que serão racionais se elaboradas em conformidade com certo procedimento discursivo, que garanta inclusão, liberdade, igualdade e racionalidade.

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